No primeiro semestre deste ano entrou em vigor a Portaria n. 393/2024 da Receita Federal do Brasil (RFB), que alterou as regras de envio ao Ministério Público de informações obtidas por auditores que poderiam caracterizar crimes não fiscais.
Trata-se, aqui, das chamadas Representações para Fins Penais, que não se confundem com as Representações Fiscais para Fins Penais: enquanto estas se referem a possíveis crimes contra a ordem tributária (sonegação fiscal, por exemplo), as primeiras atinem a outras espécies de crime que podem ser constatadas nas atividades fiscalizatórias da Receita Federal.
Nesse contexto, destacam-se em especial a falsidade de títulos, papéis e documentos públicos, de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, contra a Administração Pública Federal (em detrimento da Fazenda Nacional).
É certo que a formalização em si das referidas comunicações atinentes a ilícitos não fiscais não é novidade e está prevista desde 2018. A grande mudança, decorrente de um acordo de cooperação interinstitucional firmado entre a Receita Federal e o Ministério Público Federal, é o objeto do que pode ser compartilhado pelo órgão fiscal com as autoridades criminais quando da comunicação da possível ocorrência dos crimes em questão.
Ocorre que, até a edição da referida Portaria, não era permitido aos auditores fiscais compartilhar informações sobre a situação econômica ou financeira dos agentes fiscalizados pela RFB, o que incluía inclusive informações sobre a natureza e o estado de negócios ou atividades realizados. Isso porque, embora as comunicações feitas pelos auditores fiscais devessem ser acompanhadas de informações aptas a subsidiar a análise do caso pelas autoridades penais competentes, uma parte considerável dos dados aos quais a Receita Federal tem acesso para o exercício de sua atividade fiscalizatória é protegida por sigilo fiscal.
Contudo, a nova portaria da Receita Federal limitou a proibição exclusivamente a informações tributárias obtidas com base em tratados, acordos ou convênios internacionais. Ou seja, todas as informações que não são obtidas por meio de tais instrumentos de cooperação internacional – o que, na prática, representa a quase totalidade das fiscalizações tributárias – em tese podem ser compartilhados.
A mudança, vista com muito entusiasmo pelo Ministério Público Federal – que entendia que a proibição anterior o impossibilitava de dar concretude às investigações, em razão da insuficiência de informações que acompanhavam a comunicação de um suposto crime não fiscal –, está alinhada à tendência de viabilizar cada vez mais que informações pessoais sensíveis possam ser livremente compartilhadas entre órgãos estatais sem exigência de prévia autorização judicial.
Inclusive, essa nova portaria é fruto de uma parceria interinstitucional iniciada em 2020 entre a própria Receita Federal e o Ministério Público Federal
A expectativa, então, é que ocorra um aumento na quantidade de investigações que visam apurar crimes não fiscais constatados por agentes da Receita Federal.
Contudo, essa alteração normativa reascende o debate sobre os problemas inerentes ao envio de representações sobre crimes não fiscais.
De um lado, vale destacar que os auditores fiscais não possuem uma formação técnica específica acerca de questões de Direito Penal. Assim, a própria suspeita da ocorrência de crimes por tais agentes pode ser prejudicada por falta de conhecimento específico sobre a matéria criminal e todas as suas nuances.
Mas essa falta de preparo específico sobre os aspectos técnicos da qualificação de crimes se torna ainda mais grave quando considerada a presunção de veracidade que se costuma atribuir à Representações para Fins Penais. Isso porque, na praxe forense, não é incomum que as suspeitas levantadas pela RFB sejam consideradas uma verdade quase inquestionável e subsidiem inclusive a propositura de ações penais sem maiores diligências investigativas adicionais.
Em casos de crimes tributários e previdenciários, por exemplo, rotineiramente administradores e sócios de empresas são denunciados apenas com base nas informações do quadro societário enviadas pela Receita Federal, sem a comprovação de seu efetivo envolvimento no suposto delito ou indicação de uma única conduta que teria sido por eles efetivamente praticada.
Por outro lado, não se pode deixar de enfatizar também que as informações relacionadas a crimes não fiscais podem ser compartilhadas independentemente do encerramento do procedimento administrativo tributário – ou seja, antes mesmo que haja uma decisão definitiva sobre a efetiva existência do tributo.
Mas uma vez que os crimes não fiscais constatados por agentes da RFB geralmente estão atrelados a hipotética supressão de tributos, isso pode ocasionar situações de todo conflitantes. Como exemplo, seria possível que uma pessoa física fosse processada por lavagem de valores decorrentes de uma suposta sonegação fiscal e, na sequência, o Fisco entenda que na verdade não houve sonegação – o que desconstitui a possibilidade de cometimento de lavagem dela decorrente.
Portanto, essa portaria apresenta uma dupla preocupação: primeiro porque viabiliza o aumento do compartilhamento de informações sensíveis sem necessidade de prévia autorização judicial e, segundo, por aumentar o risco de que eventuais crimes correlatos aos fiscais sejam apurados de forma incompleta, em razão da pendência de decisão definitiva sobre a exigibilidade de um tributo.