Contrapontos à crescente repressão dos crimes tributários e previdenciários
Em meio à recente tendência de aumento no rigor dos Tribunais na repressão dos crimes contra a ordem tributária1 , dois julgamentos realizados no último mês de março se destacam como importante e necessário contraponto.
No primeiro deles, o Supremo Tribunal Federal (STF) apreciou um pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR) que refletia claramente a mencionada tendência repressiva: em ação direta de inconstitucionalidade, o órgão de direção do Ministério Público questionava previsão legal que exige o encerramento do procedimento administrativo para se iniciar uma investigação de crimes contra a ordem tributária e/ou de natureza previdenciária.
Trata-se, com efeito, do art. 83, da Lei n. 9.430/96 – com a redação dada por alteração realizada em 2010 –, segundo o qual a chamada Representação Fiscal para Fins Penais – comunicação formal por meio do qual os órgãos da Fazenda Pública indicam a possível ocorrência de um crime, requerendo uma investigação penal – somente será encaminhada ao Ministério Público “depois de proferida a decisão final, na esfera administrativa”.
Na visão da PGR, porém, essa limitação não deveria se aplicar aos crimes que dispensam a efetiva comprovação de dano ao erário (crimes formais). Assim, condutas como o não recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas do salário de empregado – apropriação indébita previdenciária –e o não recolhimento de ICMS devidamente destacado – apropriação fiscal – poderiam ser investigadas logo após a lavratura do auto de infração, antes de qualquer defesa por parte do contribuinte ou julgamento administrativo.
Ao questionar o referido dispositivo legal, portanto, o que se pretendia era legitimar o início da apuração criminal antes mesmo que a obrigação tributária ou previdenciária fosse considerada descumprida pelas autoridades administrativas competentes. Em outros termos, defendia-se a legitimidade de investigação a respeito de crime fiscal ou previdenciário antes mesmo de haver uma definição sobre a existência (ou não) de determinada obrigação tributária ou previdenciária que não tenha sido devidamente cumprida pelo contribuinte.
Ocorre que, em sessão realizada na data de 10.03.22, o Supremo Tribunal Federal rechaçou a pretensão da PGR e ratificou a constitucionalidade do art. 83, da Lei n. 9.430/96. Dessarte, na ocasião foi irretocavelmente consagrada a indispensabilidade do encerramento do procedimento administrativo-fiscal antes de se encaminhar uma Representação Fiscal para Fins Penais (para iniciar a persecução de crimes contra a ordem tributária ou a previdência social).
Aliás, foi justamente sobre a Representação Fiscal para Fins Penais que também versou recente julgamento realizado pela 1ª Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região2 . Na ocasião, deveras, exaltou-se a necessidade de necessidade de análise cautelosa das comunicações de inscrição em dívida ativa de créditos fiscais para apuração de eventual configuração de crime contra a ordem tributária por parte das autoridades criminais.
E nada obstante a relevância do posicionamento em questão, o que mais chamou a atenção no julgamento em questão foi a advertência do Desembargador que proferiu o voto vencedor. Segundo seu entendimento, as autoridades criminais (Juízes, Ministério Público e Polícia) tem se revelado especialmente receosas em face da comunicação das autoridades fazendárias, dando início a investigações criminais sem apreciar devidamente caso por caso, mas apenas para se evitar uma responsabilização funcional.
Nesse esteio, se a declaração de Desembargador Federal de um lado confirma a atual existência de um cenário especialmente repressivo em relação a crimes contra a ordem tributária, de outro pode servir como importante alerta – ou até estímulo – para eventual mudança no estado das coisas.
Somando-se tal manifestação com o posicionamento defendido pelo STF, enfim se vislumbram freios contundentes para se fortalecer a defesa em face do crescente rigor na persecução de crimes tributários e previdenciários.
Imagem: Freepik.com
1 – Conforme já apresentado em Newsletters anteriores, de jan/22 e out/21, disponíveis em: https://realeadvogados.com.br/2022/02/01/aumento-na-repressao-a-crimes-tributarios-atuacao-da-pgfn-diretamente-no-procedimento-penal-e-aumento-de-seus-poderesem-julgamento-no-stf/ e https://realeadvogados.com.br/2021/10/05/crimes-tributarios-e-os-entendimentos-fixados-pelo-stj-maior-responsabilizacao-de-socios-administradores/.
2 – TRF2, Habeas Corpus n. 5015192-55.2021.4.02.0000, 1ª Turma Especializada em Direito Penal, Previdenciário e da Propriedade Industrial, Relator para acórdão: Desembargador Federal Ivan Athié, disponibilizado em 04.04.22.