Redução a condição análoga à de escravo e interpretação do STJ: desconformidades trabalhistas são suficientes para caracterizar o crime
Em fevereiro de 2022, foi publicada decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) posicionando-se contrariamente ao entendimento de que o mero descumprimento de normas laborais não se presta à configuração do crime de redução à condição análoga à de escravo (art. 149, do Código Penal).
No caso em questão, com efeito, reformou-se decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), que decidira absolver donos de usinas de cana-de-açúcar da acusação de reduzir seus empregados à condição análoga à de escravo, por submissão a condições degradantes de trabalho.
Nesse esteio, é oportuno pontuar que as inadequações de cunho trabalhista que caracterizariam as condições degradantes, conforme a acusação, eram:
“01 Deixar de fornecer água para os trabalhadores
02 Deixar de repor água durante a jornada
03 Ausência de abrigos contra as intempéries especialmente contra o sol forte
04 Deixar de fornecer recipiente para conservação dos alimentos
05 Deixar de fornecer instalações sanitárias nas frentes de trabalho
06 Deixar de fornecer local para tomada de refeições
07 Deixar de fornecer repositor de sais minerais (hidro-eletrolítico)
08 Fornecimento precário de equipamento de proteção individual
09 Deixar de manter na frente de trabalho material necessário à prestação de primeiros socorros
10 Deixar de manter nas frentes de trabalho veículos para remoção imediata de acidentado grave
11 Deixar de disponibilizar água e sabão nas frentes de trabalho para realização de higiene pessoal antes da tomada de refeição
12 Deixar de instituir pausas para descanso nas atividades geradoras de sobrecarga muscular estática e dinâmica
13 Não fornecimento de bainha para condução de facão, quando não utilizado
14 Não é dado conhecimento prévio a o trabalhador dos riscos ocupacionais aos quais estão expostos durante a atividade
15 Falta de fornecimento regular de EPI, como no caso de luvas a qual é fornecido apenas uma para a mão esquerda enquanto a outra mão do cortador trabalha desprotegida
16 Não fornecimento de marmita térmica para manter a refeição dos trabalhadores conservada e aquecida
17 Ausência de condições de higiene conforto para os trabalhadores realizarem sua higiene pessoal antes das refeições
18 Ausência de abrigo ainda que rústico para proteção do trabalhador frente à incidência da radiação solar, considerando o fato de que não existem abrigos naturais tais como arvores para esse acolhimento protetor.
19 Falta de fornecimento de garrafas de água e ferramentas de trabalho
20 Ausência de ações de segurança e saúde nas frentes de trabalho e
21 Não fornecimento de facão para corte de cana”.
Diante de tais fatos, então, o TRF-5 pugnou que a desconformidade com a legislação trabalhista não seria suficiente, por si só, para configurar o crime em tela. Ainda, reputou-se necessária a comprovação de que os administradores tivessem direcionado o seu agir, de forma ativa ou omissiva, para reduzir seus empregados à condição análoga à de escravo – o que não haveria no caso.
Contudo, ao apreciar recurso interposto pelo Ministério Público, o STJ houve por bem reformar a referida decisão. Para tanto, destacou-se que a constatação de jornadas laborais exaustivas, a ausência de fornecimento de água e de instalações sanitárias, a inexistência de pausas para descanso nas atividades geradoras de sobrecarga muscular estática e dinâmica, bem como a falta de abrigo para proteção contra a incidência da radiação solar, ainda que rústico, seriam suficientes para caracterizar o crime de redução à condição análogo à de escravo, conforme previsto no art. 149, do Código Penal.
Esta foi a decisão da maioria do colegiado, com voto contrário do Ministro Olindo Menezes. Este, porém, destacou pontos dignos de destaque.
De fato, ponderou o Ministro vencido a necessidade de diferenciar um trabalho degradante da “dureza natural do trabalho rural braçal”. Nessa linha, acrescentou que “o trabalho rural é um trabalho, obviamente, duro, muitas vezes feito no sol, o que não pode ser confundido com o crime em causa”.
Assim, no seu entender, a “falta de instalações sanitárias, ou de água potável, no meio rural, não equivale, sem a devida contextualização, a condições degradantes de trabalho”. Dessarte, concluiu somente haver crime “quando houver violação grave que afronte frontalmente a dignidade humana do trabalhador, tratado como meio ou instrumento de objetivos econômicos, não devendo o conceito ser utilizado nos casos de violação de norma trabalhista”.
Em face de tal cenário, considerando que a maioria do colegiado decidiu afastar a absolvição dos acusados no caso a despeito das ponderações do Ministro Olindo Menezes, parece se evidenciar uma interpretação mais rigorosa do STJ em relação ao crime de redução a condição análoga à de escravo.
Imagem: Marcos Santos/USP Imagens