Crimes licitatórios

Nova lei de licitações: repercussões penais no primeiro ano de vigência


A nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos (Lei n. 14.133/2021) completou um ano em 01º de abril de 2022 e é certo que muitas questões acerca das novas disposições penais ainda carecem de definição pelos Tribunais. Nada obstante, dois temas já foram apreciados nesse primeiro ano.

De início, vale destacar que todos os crimes previstos na antiga Lei de Licitações (Lei n. 8.666/93) foram revogados com o novo diploma, que incorporou todas as mesmas figuras delitivas no corpo do Código Penal (arts. 337-E a 337-P).

Entre estes delitos, o crime antes chamado “dispensa ilegal de licitação” passou a ser denominado “contratação direta ilegal” e foi incorporado ao Código Penal no art. 337-E. E segundo sua nova redação, a conduta recriminada é a de “admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”, sob pena de reclusão de quatro a oito anos, e multa.

Ocorre que, se em relação às demais espécies de crimes licitatórios a nova lei apenas reproduziu ipsis literis (ou em paráfrase) os termos previstos na Lei n. 8.666/93, o mesmo não se verificou relativamente ao delito supra destacado.

Isso porque, ao se prever os termos do crime de contratação direta ilegal no art. 337-E do Código Penal, o legislador optou por não reproduzir uma parte da conduta recriminada anteriormente no art. 89, da Lei n. 8.666/93, isto é, “deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”.

Em outros termos, o crime que era previsto anteriormente como

“dispensar ou inexigir licitação fora das hipóteses previstas em lei, ou deixar de observar as formalidades pertinentes à dispensa ou à inexigibilidade”,

passou a ser previsto da seguinte forma:

“admitir, possibilitar ou dar causa à contratação direta fora das hipóteses previstas em lei”.

Diante de tal quadro, a contratação direta (sem licitação) que não observa as formalidades previstas em lei não caracteriza mais crime. É, note-se, o que reconheceu o Tribunal Regional Federal da 3ª Região ao absolver, de ofício, um acusado que fora condenado em razão da “responsabilidade pela dispensa da licitação sem observância dos requisitos legais”3 .

De acordo com o Tribunal julgador, ao optar por suprimir a conduta omissiva, possivelmente o legislador entendeu que formalismos são irregularidades dignas de repressão na seara administrativa, mas não comprometem o interesse público a ponto de adquirir relevância penal.

Trata-se da chamada abolitio criminis (abolição do crime), instituto jurídico de direito penal que, por ser mais favorável ao acusado, aplica-se mesmo a fatos anteriores à vigência da nova lei (retroatividade da lei penal mais benéfica).

Significa dizer, toda pessoa investigada, processada ou mesmo que cumpre pena em razão da dispensa de licitação em desconformidade com as formalidades previstas em lei deve ser isentado da persecução penal.

Por outro lado, também é digna de destaque a análise realizada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), na função de responsável pela uniformização da interpretação das leis federais, sobre a inexigibilidade de licitação para a contratação de serviços advocatícios no âmbito da administração pública2 .

Em semelhante sentido ao que se verificou em relação à contratação direta ilegal, o STJ reconheceu que a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos não prevê a “singularidade do serviço” como requisito para a dispensa de licitação na contratação de advogado pela administração pública – diferentemente do que o fazia a Lei n. 8.666/93.

De fato, ao passo que a Lei n. 8.666/93 previa, entre as hipóteses de dispensa de licitação, a singularidade dos serviços em seu art. 25, a Lei n. 14.133/21 assim não o faz ao prever os casos de contratação direta (art. 74).

Com base nesse entendimento, então, no caso concreto em questão o STJ afastou a configuração do crime de contratação direta ilegal. Significa dizer, portanto, que com a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos não mais caracteriza crime a dispensa de licitação para contratação de serviço que não seja singular – tal como o era sob a égide da Lei n. 8.666/93.

Mas em que pesem os relevantes posicionamentos em questão, não se pode olvidar que ainda restam muitas outras questões em aberto.

Como exemplo, destaca-se o aumento desarrazoado das penas, que em sua maioria passaram a ter sanções previstas entre quatro e oito anos de privação de liberdade – o que, inclusive, inviabiliza a adoção de institutos de solução consensual do processo como o acordo de não persecução penal.

Dessarte, ainda se verifica um cenário de grande insegurança jurídica, restando aguardar a devida apreciação dos Tribunais sobre questões assaz sensíveis.

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1 – TRF3, Apelação Criminal n. 0000886-02.2013.4.03.6118, 11ª Turma, Relator: Desembargador Federal José Lunardelli, julgada em 27.09.21.

2 – STJ, AgRg no HC n. 669.347/SP, Quinta Turma, Relator(a) Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador Convocado), julgado em 13.12.21.