Regularização de valores não declarados mantidos no exterior: o RERCT-Geral e seus efeitos criminais
A manutenção de bens ou valores no exterior sem que haja declaração oficial às instituições brasileiras por seu titular/detentor pode caracterizar crime.
De um lado, caso os ativos sejam omitidos da Receita Federal do Brasil (RFB), em tese se configura crime contra a ordem tributária (art. 1º da Lei n. 8.137/90). De outro, se as informações forem omitidas do Banco Central (Bacen), estaria então caracterizado o crime de evasão de divisas (art. 22 da Lei n. 7.492/86). Ainda, a depender da origem dos valores mantidos no exterior (se lícita ou ilícita), poderia também se verificar o crime de lavagem de capitais (art. 1º da Lei 9.613/96).
À toda evidência, portanto, manter bens ou valores não declarados no exterior pode trazer graves consequências no âmbito criminal – já que penas máximas dos possíveis crimes variam de cinco a dez anos de prisão.
Entretanto, em setembro foi publicada lei que autoriza a regularização dessa situação concedendo imunidade aos crimes correspondentes1. Trata-se, com efeito, do Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT), uma solução empregada pelo legislador que busca aumentar a arrecadação do Estado oferecendo benefícios ao contribuinte como forma de estímulo.
Em breves linhas, o programa permite que pessoas físicas e jurídicas regularizem ativos não declarados – que estejam no exterior, mas não só – por meio da declaração voluntária de capitais que possuíam em 31.12.23. Para tanto, o contribuinte interessado deve aderir ao RERCT, apresentar a declaração de regularização, pagar o imposto e a multa até a data limite de 15.12.24.
Do ponto de vista fiscal, exige-se o pagamento de 15% sobre o valor desses ativos a título de imposto de renda, além de uma multa de 100% sobre o imposto de 15%. Assim, o recolhimento para a regularização de tais valores totaliza 30%. Já no que atine à imunidade quanto aos possíveis crimes relacionados, a lei estabeleceu que basta uma declaração de que os ativos são provenientes de atividade econômica lícita, sem obrigatoriedade de comprovação.
E a fim de afastar dúvidas sobre essa exigência, a RFB esclareceu2 que serão considerados de origem lícita mesmo os recursos provenientes de crimes contra a ordem tributária, evasão de divisas, sonegação de contribuição previdenciária, lavagem de dinheiro e falsidade de documento público ou particular.
Assim, no que se refere à imunidade criminal, o RERCT apresenta procedimento bastante simplificado (e benéfico) ao interessado na regularização.
Ainda, a RFB também estabeleceu que a declaração de origem lícita dos valores a serem regularizados somente podem ser questionados se houver indícios suficientes à abertura de expediente investigatório ou procedimento criminal, cabendo ao órgão fazendário o ônus de apresentar tais elementos.
Em outros termos, a declaração apresentada pelo contribuinte de que os ativos possuem origem lícita se presume como verdadeira e a RFB somente pode questionar sua veracidade se estiver fundada em elementos concretos mínimos.
Ocorre que, se do ponto de vista criminal o RERCT a princípio se apresenta como ótima solução para regularizar valores não declarados às autoridades fiscal e cambial, não se pode desconsiderar a existência de determinados riscos.
De início, no que atine à presunção de veracidade da declaração de origem lícita e de ônus da RFB de provar o contrário, cumpre enfatizar que não se trata de uma previsão da lei. Na verdade, o tema é disciplinado por uma Instrução Normativa da RFB, isto é, uma norma estabelecida internamente pelo órgão fiscal.
Assim, eventuais alterações a respeito dessa declaração e de sua contestação pela RFB podem ocorrer de forma muito mais simples – já que o processo de alteração de uma lei federal é complexo – e está sujeito ao próprio órgão fazendário – que inequivocamente não se trata de parte desinteressada.
Nesse sentido, aliás, há precedentes negativos. Isso porque, dois anos após a edição do primeiro RERCT em 2016, a RFB editou norma prevendo a possibilidade de que o órgão fiscal exigisse dos contribuintes a comprovação da licitude dos ativos regularizados3 – o que não era previsto na lei federal correspondente.
A medida obrigou diversos contribuintes a buscarem por meio do Poder Judiciário o encerramento de investigações criminais iniciadas a partir de instigações da Receita Federal, além de ter gerado debates quanto aos limites de atuação do órgão fiscal e o dever de sigilo sobre as informações recebidas dos contribuintes.
De mais a mais, é oportuno destacar que a eventual exclusão do contribuinte do programa – decisão que cabe à RFB – autoriza a adoção de medidas criminais.
Consequentemente, apesar de representar oportunidade para regularizar ativos não declarados às autoridades competentes com imunidade criminal, não se trata de hipótese totalmente isenta de riscos. Nesse esteio, a avaliação prévia de todas as informações e documentos pertinentes sob o ponto de vista criminal se revela de todo recomendável a fim de subsidiar a melhor decisão.
1 Lei n. 14.973/24.
2 Instrução Normativa RFB n. 2221, de 19/10/2024.
3 Ato Declaratório Interpretativo RFB n. 5, de 04/12/2018