Acordos como solução de casos criminais: novas decisões fortalecem o cabimento do ANPP
Em nosso país, historicamente a regra é que as apurações de crimes se encerram com uma conclusão sobre os fatos com base em provas. Assim, normalmente há uma avaliação sobre o que efetivamente ocorreu para definir a consequência correspondente (condenação ou absolvição/arquivamento).
Contudo, em meados da década de 1990 passaram a existir exceções: em determinadas situações, a lei passou a permitir o encerramento do processo criminal por meio de um acordo entre acusação e acusado1. Logo, em tais circunstâncias passou a ser indiferente se os fatos efetivamente ocorreram ou mesmo se houve crime, bastando o consenso entre as partes.
Nesses casos, desde que cumpridas as condições estabelecidas no acordo, o procedimento criminal é extinto sem qualquer juízo de valor negativo – o que, tecnicamente, significa a manutenção do estado de inocência.
Nada obstante, desde então as hipóteses de solução consensual no âmbito criminal estavam limitadas a crimes de menor gravidade – isto é, com pena máxima de 1 (um) ano ou pena mínima não superior a 1 (um) ano. Desse modo, o número de casos encerrados por meio de acordos era reduzido.
A partir de 2020, porém, foi instituída uma nova espécie de acordo criminal com cabimento muito mais amplo: o Acordo de Não Persecução Penal (ANPP).
Em breves linhas, o ANPP é um acordo celebrado entre investigado e Ministério Público em que, se atendidas as condições fixadas, o beneficiário deixa de ser processado (e evita uma condenação). E entre as principais diferenças em relação aos institutos até então existentes é o número muito maior de situações em que pode ser celebrado: na apuração de crimes sem violência ou grave ameaça cuja pena mínima seja inferior a 4 (quatro) anos.
Portanto, diante do maior número de hipóteses de cabimento do instituto, a criação do ANPP significou um importante reforço legal ao valor atribuído para o consenso como forma legítima de solução dos casos criminais.
Mas a despeito da importância desse novo instituto, muitas dúvidas surgiram quanto à aplicabilidade do ANPP nos casos práticos.
Em especial, questionou-se então: nos casos em que o processo já estava em andamento quando a lei entrou em vigor, seria possível a sua celebração? Ou, considerando a previsão legal de que o ANPP deve ser oferecido antes do oferecimento de uma denúncia (que dá início ao processo criminal), somente seria cabível nos casos que se encontravam na fase de investigação à época?
E embora quase 4 (quatro) anos já tenham se passado desde a criação do instituto, foi apenas no último mês de setembro que o Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionou a respeito do tema. E na ocasião, decidiu-se que o ANPP é cabível mesmo nos processos que se encontravam em trâmite quando a lei que o prevê entrou em vigor (24/01/20) – inclusive nos casos com decisão condenatória, desde que não tenham se encerrado de forma definitiva2.
Observa-se, assim, não apenas a defesa do amplo cabimento do ANPP, mas também a valorização dos acordos como meio legítimo de solução dos casos criminais. Afinal, para estender o cabimento do ANPP a tais hipóteses, o STF reconheceu que não se trata de mera formalidade do processo, mas de verdadeira garantia fundamental que deve beneficiar o acusado.
E tamanha foi a relevância desse posicionamento que o STF atribuiu repercussão geral à decisão em comento, ou seja, estabeleceu que a tese sob tela possui efeitos mandatórios para todos os Tribunais. Não à toa, no final de outubro também o Superior Tribunal de Justiça (STJ) fixou o mesmo entendimento3.
Sem prejuízo, a confirmar ainda mais a valorização do ANPP pelos Tribunais Superiores, vale destacar outras recentes decisões proferidas pelo STJ que igualmente demonstram a importância atribuída ao instituto.
De um lado, em julgamento realizado em agosto4, o STJ rechaçou que o Ministério Público alegue a ocorrência de múltiplos crimes apenas para evitar o cabimento do ANPP – caracterizando o denominado “excesso acusatório”.
De outro, em setembro o STJ também reconheceu que a acusação não pode se recusar a oferecer o ANPP caso estejam presentes os requisitos legais. E por esse motivo, a recusa injustificada ou ilegalmente motivada do Ministério Público em oferecer o acordo deve levar à rejeição da denúncia5.
Por fim, em outubro o STJ consignou que a prática de vários crimes semelhantes em período aproximado (continuidade delitiva) não impede a celebração de ANPP por não se tratar de uma das hipóteses taxativas que o legislador deliberadamente contemplou como excludentes da possibilidade de acordo6.
Portanto, em face de todas essas decisões que garantem o amplo cabimento do ANPP, salta aos olhos a valorização do instituto pelo STJ. E as razões para tanto são bem identificadas nos dizeres do próprio Tribunal:
“os mecanismos consensuais constituem maneiras de alcançar resposta penal mais célere, (…) ao mesmo tempo que aliviam a sobrecarga dos escaninhos judiciais e permitem priorizar o processamento de delitos mais graves, (…) [bem como] atuam como instrumentos político-criminais de relegitimação, limitação e redução dos danos causados pelo direito penal”7.
Assim, seja como garantia favorável a investigados/acusados, seja como resposta ao volume de processos que assoberba dos Tribunais, o que não se pode ignorar é a tendência de que a solução consensual seja cada vez mais valorizada nos processos criminais – o que, por ora, reflete-se especialmente no ANPP.
1 Trata-se da Lei n. 9.099/1995, que criou os institutos da “transação penal” e da “suspensão condicional do processo”.
2 STF, HC 85.913/DF, Relator: Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 18/09/2024.
3 STJ, REsp n. 1.890.344/RS, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 23/10/2024 e REsp n. 1.890.343/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Terceira Seção, julgado em 23/10/2024.
4 STJ, RHC 188.922/SP, Relator: Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 13/08/2024.
5 STJ, REsp 2.038.947/SP, Relator: Ministro Rogerio Schietti, Sexta Turma, julgado em 23/09/2024.
6 STJ, AREsp 2.406.856/SP, Relator: Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 08/10/2024.
7 Vide nota 5 supra.